Daniela Rezende é escritora e artista educadora. Bacharela em história da arte pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e mestra em letras pela Universidade de São Paulo (USP), nasceu e mora em São Paulo. Publicou textos em revistas virtuais e zines. Teve um videopoema apresentado no 4º Concurso de Videopoesia da Desvairada – Feira de Poesia de São Paulo (2020). Integrou o Curso Livre de Preparação de Escritores – CLIPE, pela Casa das Rosas (2021). Participou da antologia Cartografias – vol. 1: contos de autoras brasileiras (2022), pela editora Primata. Pela editora Urutau, lançou Uma mulher só não faz verão (2022).
O bebê não parava de chorar. Ela não tinha um minuto de sossego. A babá não havia ido trabalhar – supostamente por causa de uma “gripe” – e ela tinha que lidar com tudo aquilo sozinha. A doméstica estava de folga. Não eram nem dez horas da manhã e a cabeça já estava latejando; teria que tomar outra aspirina. Faria então mais uma xícara de café. O bebê não parava de chorar – ela foi ver o que ele queria.
– Tony? Tony, querido, onde é que você está? Tonizinho?
Passou pela sala recém-reformada, com o piso de madeira, os amplos janelões e as plantas tropicais pendendo por toda a extensão da varanda integrada ao cômodo. A mesa de centro, de vidro e aço, reluzia à luz do sol. O tapete persa parecia intocado. Ao menos Dôra está fazendo um bom trabalho. Foi seguindo o som do choro do bebê: passou em frente ao próprio quarto, com o seu conceito intimista e aquela infinidade de almofadas de penas de ganso sobre a cama super king size. Tão confortáveis… Mal dá para acreditar! Abriu a porta do quarto de visitas e olhou com orgulho para as últimas lembranças de viagem, trazidas da Tailândia, da China e do Marrocos; parou em frente ao espelho do corredor com a moldura de marchetaria, herança da bisavó materna de Antônio, e arrumou os cachos dourados para trás das orelhas delicadas com brincos de pérola. Um par de olhos azuis a encarou de volta pelo reflexo. Pareço tão cansada, mas é só porque Tony não me deixou dormir nada noite passada. O bebê não parava de chorar – mas, onde estaria? Ainda não havia olhado no escritório.
– Tony? Não me diga que você está mexendo nas coisas do papai de novo!
Entrou no escritório. Lá estava o bebê, na cadeira de couro defronte à mesa de trabalho do marido. Como ele subiu ali? Será que tirou alguma coisa do lugar? Antônio vai ficar uma fera! Ele ia completar dois anos de idade – a tal fase da “adolescência” dos bebês – e agora subia em todos os lugares que podia. De repente, ela percebeu que havia algo de errado no choro da criança: era como se ele não estivesse conseguindo respirar direito. Em algum lugar de sua mente, atordoada pelo cansaço da noite mal dormida e pela dor latejante nas têmporas, uma luz vermelha se acendeu e o pânico começou, lentamente, a tomar conta de seu corpo. Primeiro sentiu os dedos dos pés e das mãos congelados, como se tivesse mergulhado as extremidades do corpo em água glacial. Depois, a sensação de paralisia foi se espalhando pelo corpo… Ah, não, Tony, você não fez isso! Pegou o bebê nos braços – ele ainda chorava – e começou a balançá-lo com gentileza, massageando seu peito, para ver se a respiração melhorava. Também começou a cantar baixinho para acalmá-lo. Aos poucos, o choro foi diminuindo; virou um resmungo manhoso. Até que, enfim, cessou por completo.
– Tony, o que você estava fazendo aqui?
Ainda balançando o bebê no colo, olhou com atenção para a mesa do marido. Não era permitido a ninguém – absolutamente ninguém – mexer em suas coisas, ainda que a mesa estivesse um caos. O que, naquele momento, era o caso: havia uma bagunça generalizada em torno do computador, constituída por papéis, contas e recibos, livros empilhados, revistas, canetas e clipes. Também havia uma série de moedas históricas e antigas sobre o tampo de jacarandá, que Antônio colecionava há anos. Naquela confusão, o álbum de numismática estava aberto sobre a mesa na seção de moedas raras. Ali, ela reparou que uma das principais moedas estava faltando: um dólar de prata cunhado nos Estados Unidos no século XIX. Antônio sempre dizia que aquela moeda era especial, pois valia milhões. Era um espécime raro. Ah não, ah não! O pânico agora vibrava através de cada fibra de seu ser e ela teve um pressentimento: – Tony, você estava mexendo nas moedas do papai? Hein, Tony? Cadê a moeda que estava aqui? Você pegou?
O bebê, confuso com a mudança repentina na postura da mãe, voltou a chorar. Instintivamente, olhou para ela e colocou as duas mãos na boca.
– Tony, você pegou a moeda que estava aqui e colocou na boca? Você engoliu? Fala, Tony, fala!
O bebê começou a chorar mais alto do que nunca. Ela agora estava desesperada, balançando o filho freneticamente, sem perceber. Começou a sentir – ela própria – falta de ar. Deus me proteja, Antônio vai me matar! Preciso ligar para ele e contar o que aconteceu. Justo hoje, justo hoje, que a babá não veio! Mas se ela está achando que vai ter esse dia pago, pela justificativa da tal doença, está muito enganada! Ah, como está! É culpa dela que tudo isso esteja acontecendo.
Sentou, tremendo, no chaise longue de veludo azul que havia no escritório e pegou o telefone. Discou. Do outro lado da linha, a secretária de Antônio atendeu. Ele estava em reunião. Mas é urgente! Pela segunda vez, a secretária tentou transferir a ligação. Depois de um bom tempo, ela ouviu a voz irritada do marido:
– Alô? Tudo bem? O que aconteceu?
Gaguejando, maternando Tony com uma das mãos e segurando o telefone com a outra, contou ao marido que o bebê havia engolido uma das moedas raras da coleção. Ele pediu “um momento” e ficou fora da linha; quando voltou, explodiu:
– Mas como é que isso pôde acontecer com duas mulheres em casa para cuidar de uma criança de dois anos? Como, me diz? Você e essa babá são duas incompetentes! Vou passar aí com o motorista em meia hora e vamos levar o Tony até o consultório do Albuquerque, que é meu amigo e vai dar um jeito nisso… Essa moeda vale muito dinheiro, você sabe. Você sabe! Temos que recuperá-la de qualquer maneira!
Ela ficou em silêncio; lágrimas quentes corriam por seu rosto. Antes de desligar, Antônio dissera que, por conta dela, teria que remarcar todos os compromissos daquela manhã. Se eu vier a perder algum cliente nesse projeto por causa disso, a culpa é sua!
Em vinte minutos, ele chegou. Ela mal havia acabado de trocar a fralda do bebê, quando o marido entrou no apartamento. Ela ouviu Antônio se aproximando antes mesmo de vê-lo, pisando duro; estava no quarto de Tony, tirando a roupinha dele, repleta de suor. Antônio parou na soleira da porta, cruzou os braços e fez uma cara feia para ela:
– Então, vamos? Ainda não está pronta?
– Oi, amor! Só mais um minuto que eu vou trocar a camisetinha do Tony…
No momento em que desabotoou a roupa do bebê, ela ouviu o ruído metálico frio caindo no chão. Olhou, surpresa, a tempo de ver um lampejo prateado rolando pelo piso de madeira e indo parar exatamente aos pés do marido, tão surpreso quanto ela. A moeda. Ela suspendeu a respiração por um segundo, enquanto o rosto de Antônio ficava mais e mais vermelho. Aguardou a explosão com a resignação dos mártires.
– Sua cretina! Você me fez sair do escritório e desmarcar todas aquelas reuniões por nada! Você tem noção do que fez?
– Antônio, des… Desculpe. Eu não sabia, não tinha como…
Ele se aproximou rápido e ela imediatamente sentiu medo. A bofetada atingiu o rosto pálido em cheio, fazendo a cabeça virar e os cachos dourados voarem pelo ar.
– Você é uma inútil. – O marido sussurrou. Havia ódio verdadeiro em sua voz.
Ela colocou ambas as mãos no rosto, que fervia de humilhação e dor, e disparou atrás de Antônio, enquanto ele, resoluto, saía pela porta afora do apartamento. Queria, uma vez mais, se desculpar pelo engano. Me desculpe, ela pensou, estupefata, diante da porta que o marido batera como um turbilhão atrás de si. A dor de cabeça, que durante certo tempo ela ignorara, voltou com força total. Foi até a cozinha e tomou mais uma aspirina. Pôs água na cafeteira elétrica para mais uma xícara de café. Do quarto, o bebê começou a chorar. De novo. Provavelmente, estava assustado com a cena que acabara de presenciar. É o mais inocente de todos nós; o único que não tem nenhuma culpa! Foi caminhando desanimada pelo amplo apartamento, seguindo o som do choro do bebê. Ainda admirou por um segundo a luz do dia que brilhava, prismática, na bailarina de cristal sobre a mesinha de centro da sala. De repente, notou que Tony havia parado de chorar – e, agora, era o som das suas risadas que preenchia o ambiente. Era como se ele estivesse brincando com algo muito engraçado.
– O que é que o Tonizinho está achando tão engraçado? O que é?!
Ao entrar no quarto, reparou que o bebê estava sentado no chão e brincava com a moeda. Era o reflexo prateado do metal, luzindo contra as paredes, que o fazia rir. Antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, porém, Tony olhou bem para a mãe, estacada diante da cena, e, instintivamente, colocou a moeda com as duas mãos na boca. Então, engoliu.
Arte: Mother and Child, de Christian Krohg.